sexta-feira, 14 de maio de 2010

Caroço de pequi

Estou implorando: ponha-me no chão e use suas mãos sem medida alguma; faz de conta que sou o brinquedo do vizinho, rompa minhas partes articuladas sem ter medo de continuar, prometo não emitir gemidos de dor. Ou talvez emita um, mas será o único, solitário, cuspido numa golfada de sangue para consolar meus membros soltos no chão, para tentar encobri-los. Escolha suas unhas mais compridas e enfie nos meus olhos, que fixam seus pêlos úmidos, seus mamilos endurecidos, seu coração palpitante através da carne. Estou implorando. Dançando, pisoteie minhas costelas até que parem de se quebrar; depois tente alinhar minha postura de modo que eu fique de joelhos, como alguém que se confessa. Comece a transfigurar meu rosto. Com a pinça, remova pêlo por pêlo minhas duas sobrancelhas. Seja muito paciente. Com o machado cego, corte as pontas duplas de meus cabelos, acabe com o problema pela raiz. Com sua velha faca de ponta – enferrujada -, rasgue as abas do meu nariz. Se não conseguir - sei que a lâmina é um fio casto, gasto – perfure as maçãs do meu rosto onde melhor combinar. Use seu senso estético para compor a figura. Com um cuidado cirúrgico, remova cada um dos meus dentes. Depois embaralhe a ordem da natureza, enterre-os de volta na gengiva lisa copiando uma sequência inventada. Quero sorrir mostrando os molares, sentir a ponta dos caninos na última curva da minha boca. Observe enquanto eu balbucio alguma toada romântica, um hino. Ouça com muita atenção. Estou implorando, não estou louco. Meu novo aspecto é provavelmente abominável. Meus olhos vertem sangue, cataratas vermelhas, mas o cheiro luxurioso das suas partes excitadas ainda entrega sua condição de êxtase, seu arrepio. Você recompôs todas as minhas antigas formas, sou algo a menos que um homem. Ou algo a mais. Na marca - é onde não estou. Sei que agora você está passando os dedos nos lábios que acabou de morder, tendo neles cavado uma fenda que se abre em cada palavra articulada. Sei exatamente o que você quer, porque fui eu quem te trouxe até aqui. Deixei pouquíssima margem para o erro. Eu, amorfo, monstruoso, deslizando minha pele nua e inumana no sangue que já foi meu, excito cada poro do seu corpo. Não estou louco. Suas pernas estão abertas agora, a carne tremendo por alguma coisa que restou em mim. Desta vez, não faço a piada. Você ainda fustiga minha carne com um par de agulhas, simulando levar adiante a tarefa recebida. Mas sabe o que é um ato falho? É uma questão de tempo. Por incrível que pareça, dá pra sentir você lambendo os abscessos que causou no que era meu ombro direito. Suas unhas rasgam minha pele aqui e ali, num desespero que, eu sei, não é mais parte do tratado. Em breve, você estará se esfolando em mim. Não sou louco. Você não adoraria repetir o mantra?

2 comentários: