sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

Último (excerto) do ano

Aquela era a primeira vez que Renaldo passava a virada do ano vendo os discursos na televisão. Apesar da decadência insultante que na ocasião pairava sobre sua cabeça oca (resultado de duas garrafas de champagne abertas antes da meia-noite, nenhuma companhia e muito mais), se lembrava sem saudade dos anos em que passara a data com maior euforia. Sem êxito cronológico, recordou da noite no Mojave com os bons pacientes da clínica High & Dry, outrora hippies de Frisco - fogos estourando acima e abaixo de suas velhas toucas feitas à mão; da enorme aventura moral e intelectual que fora traduzir trechos de Petrônio enquanto seus poucos parentes tentavam contato pelo telefone, só para desejar tudo de bom, meu querido; da vez em que, movido apenas por curiosidade, investigou os cabelos presos no ralo do banheiro, marcando em uma página perdida quantos eram morenos, loiros, ruivos e grisalhos, enquanto o planeta, em sua mais perfeita órbita, completava a última rotação do ano.

domingo, 12 de setembro de 2010

Ficção número um

Hoje vi um filme na TV. Era sobre um escritor louco que tinha uma namorada que só ele via. Sabe, imaginária. Escritores têm uma imaginação hiperativa, nada de errado com o roteiro. Era o tipo de filme que te mantém entretido quando você não quer pensar em mais nada. O protagonista fazia o tipo complicado, intenso. Pensamentos indecifráveis. Um charme. A mulher o havia largado, e a solidão pesava sobre sua cabeça como sete palmos de terra. Você já deve ter ouvido essa história. O que me obrigou a ficar no sofá, olhando as bem-humoradas cenas, foi o calor da tarde. Eu havia abusado de Clonazepam na noite anterior, e ainda sentia seus efeitos. “Veja o sujeito falando sozinho. Ficando louco de amor. Fiel a ninguém mais. Batendo de frente com seus melhores amigos em defesa da mulher que julgava verdadeira”. A risada é garantida. Um estouro! Sabe que palavra consigo formar com “estouro”? Tesouro. O que isso significa?

O filme se desenrola no ritmo do domingo, e a certa altura o escritor descobre que sua paixão inventada não passa de amor próprio. Foi quando fiquei irado. Já pedi desculpas pela porcelana que destruí, tudo bem. Que tipo fajuto de escritor era aquele? Não se pode cobrar muito, é claro, já que, num total de 1 hora e meia de filme, ele passa um ou dois minutos escrevendo. Será que é preciso tanto tempo assim para descobrir seu polegar opositor? O maldito mata-piolhos? Vá à merda. A mulher some, depois aparece, depois some. Ele descobre uma de carne e osso. Ele se apaixona. Ela também, qual a dúvida? Adeus loucura. Nunca mais.

Só espero que ele passe o resto da vida sem escrever uma única linha. Santo & Johnny estão agitando as caixas de som agora. O calor está ferrado. Preciso beber mais água para eliminar o Clonazepam do meu sistema. A mulher ideal. Qual a novidade? Ou, nas palavras de Salomão, a "novelty"?

Talvez seja Francis Bacon (...)

segunda-feira, 26 de julho de 2010

Quando o amor de vocês voltar, irá embora o medo de jurar que é “para sempre” o “te amo”; não por haver alguma certeza na afirmação, mas por haver esperança. A dor de desperdiçar mais tempo seria insuportável ao coração que envelhece tão rápido, que mesmo com batidas contadas rufa tão depressa. As fantasias românticas acerca do que “é pra ser” serão. Haverá a cumplicidade de um crime cometido por duas vítimas, e a sincronia parecerá divina.

Mas e enquanto o amor não volta? Toda a sabedoria será vã. E quando voltar? Será pouca. E se não voltar?

sexta-feira, 2 de julho de 2010

Olhe o tamanho da cabeça

Encontraram o bilhete junto ao corpo inerte de Barnabé, nu e ensanguentado. Estou com pressa. O que dizia era o seguinte:

Acho que na verdade o medo que tenho de enlouquecer é o desejo de que minha vida não corra tão comum, de que minha cabeça ultrapasse suas barreiras de osso, de que eu me torne louco como um mongol. Medo constante, tão forte e constante que só pode ser um oculto artifício da mente, um desejo quieto se masturbando no canto da sala de jantar.

Se eu tiver filhos, o que farei dos meus cachos enrolados; se tiver mulher, o que farei?

Quero ter um futuro que não é certo, cujas probabilidades de sucesso são mínimas mas eu me arrisco a acertar e abraço a causa mesmo. Coração pesado. Sem freios numa pista de gelo. Sobretudo bêbado.

Pobre cão asmático. Eu te saúdo.

quarta-feira, 9 de junho de 2010

O Cavaleiro da Triste Figura

A triste figura de Dom Quixote
pintada no espelho me assusta tanto
pois vejo-me presa de forte quebranto
(a não ter vivido prefiro a morte)
sorrio demente, esguio, de canto
e não perco a rima apesar do espanto
porque a loucura é um dourado lingote
que eu raspo até fazer brilhar o pranto
que afundará as naves de Lepanto,
pra que Cervantes morra sobre o bote
em que traçou, e qual tétrico encanto,
o nosso rumo, condição e sorte.

sábado, 5 de junho de 2010

O cone de tempo

Tantas horas passam;
Há minutos que medi
Com mil pensamentos.

terça-feira, 25 de maio de 2010

O gelo

Mister Fantástico era o mais espetacular mágico do mundo. Ele tirava coelhos da cartola, fazia sumir objetos, transformava bolinhas de pingue-pongue em pombas brancas, dava o maior show. Até que um dia ele fez a maior mágica jamais vista: chupou uma pedra de gelo do tamanho de um morango por nove dias inteiros consecutivos, sem deixar com que virasse água. Assim que pôs o gelo na boca, numa terça-feira quente de férias, fechou os lábios grossos e suas sobrancelhas caíram numa expressão séria que o deixou parecido com algum velho latino, que em tardes de domingo abre uma cadeira na calçada da garagem e fica só olhando - e a partir de então viveu sob uma espécie de voto de silêncio, de modo que o único som que se ouvia quando ele estava por perto era o chuque chuque do gelo chupado.

Nos nove dias de truque, Mister Fantástico entrou e saiu de oito pequenas cidades da região para chupar seu gelo; semeou sua mensagem às mulheres e crianças que sorriam na rua ao ver o curioso mágico, olhando sério e não mastigando, não engolindo, mas chupando, chuchuchupando uma pedra de gelo do tamanho de um morango que não sumia nunca! Era o maior mágico do mundo deste Gaston Vellares, não havia a menor dúvida. As pessoas se impressionavam, formulavam teorias: “Mister Fantástico vendeu a alma para o diabo quando tinha seis anos”; “Mister Fantástico tinha duas gotas de saliva na boca, mas as engoliu e desde então não tem mais nada”; “Mister Fantástico tem a língua feita de pudim de pão”; “Mister Fantástico vai chupar o gelo até perder os sentidos”; “Mister Fantástico já caminhou sobre as águas e agora vai salvar os homens na terra”; “Mister Fantástico é genro do presidente”.

Então uma intensa comoção dominou aos poucos as oito cidadezinhas. Muitos seguiam o mágico em sua peregrinação para tentar descobrir qualquer coisa ou apenas ouvir o misterioso chuque chuque que nunca cessava de insinuar sua muda sabedoria. Tendo se tornado tamanho ícone, Mister Fantástico agora vivia 100% do tempo em uma apresentação de mágica: todos os bancos eram palcos, todas as luzes eram refletores, todo o mundo era platéia, todos os olhos eram seus. Ainda hoje há quem diga que este foi o verdadeiro truque de Mister Fantástico, embora a teoria encontre forte rejeição entre os que defendem sua memória.

Quando todo o barulho estava no auge, nove dias depois, na praça central da cidadezinha onde tudo começou, Mister Fantástico suspirou três vezes, olhou para o céu e depois para as pessoas, que gritavam à sua volta com olhos arregalados e sorrisos deformados por palavras de curiosidade e regozijo. Esticou os joelhos, lançando-se para cima, e ergueu o braço direito pedindo silêncio e atenção. A gritaria cessou rapidamente e todos encararam ansiosos o pequeno sujeito. Nos olhos da imensa platéia brilhava algo de raivoso que dizia que aquele mágico era o maior dos cornos, e dos picaretas também, se pensava que podia fazer com que calassem e ouvissem. Mas foi o que aconteceu. Tudo pairou no ar por um instante, Mister Fantástico piscou duas vezes e disse, de uma só vez e com a voz estranha por causa do gelo:

- Traz açúcar, limão e pinga.

sexta-feira, 14 de maio de 2010

Caroço de pequi

Estou implorando: ponha-me no chão e use suas mãos sem medida alguma; faz de conta que sou o brinquedo do vizinho, rompa minhas partes articuladas sem ter medo de continuar, prometo não emitir gemidos de dor. Ou talvez emita um, mas será o único, solitário, cuspido numa golfada de sangue para consolar meus membros soltos no chão, para tentar encobri-los. Escolha suas unhas mais compridas e enfie nos meus olhos, que fixam seus pêlos úmidos, seus mamilos endurecidos, seu coração palpitante através da carne. Estou implorando. Dançando, pisoteie minhas costelas até que parem de se quebrar; depois tente alinhar minha postura de modo que eu fique de joelhos, como alguém que se confessa. Comece a transfigurar meu rosto. Com a pinça, remova pêlo por pêlo minhas duas sobrancelhas. Seja muito paciente. Com o machado cego, corte as pontas duplas de meus cabelos, acabe com o problema pela raiz. Com sua velha faca de ponta – enferrujada -, rasgue as abas do meu nariz. Se não conseguir - sei que a lâmina é um fio casto, gasto – perfure as maçãs do meu rosto onde melhor combinar. Use seu senso estético para compor a figura. Com um cuidado cirúrgico, remova cada um dos meus dentes. Depois embaralhe a ordem da natureza, enterre-os de volta na gengiva lisa copiando uma sequência inventada. Quero sorrir mostrando os molares, sentir a ponta dos caninos na última curva da minha boca. Observe enquanto eu balbucio alguma toada romântica, um hino. Ouça com muita atenção. Estou implorando, não estou louco. Meu novo aspecto é provavelmente abominável. Meus olhos vertem sangue, cataratas vermelhas, mas o cheiro luxurioso das suas partes excitadas ainda entrega sua condição de êxtase, seu arrepio. Você recompôs todas as minhas antigas formas, sou algo a menos que um homem. Ou algo a mais. Na marca - é onde não estou. Sei que agora você está passando os dedos nos lábios que acabou de morder, tendo neles cavado uma fenda que se abre em cada palavra articulada. Sei exatamente o que você quer, porque fui eu quem te trouxe até aqui. Deixei pouquíssima margem para o erro. Eu, amorfo, monstruoso, deslizando minha pele nua e inumana no sangue que já foi meu, excito cada poro do seu corpo. Não estou louco. Suas pernas estão abertas agora, a carne tremendo por alguma coisa que restou em mim. Desta vez, não faço a piada. Você ainda fustiga minha carne com um par de agulhas, simulando levar adiante a tarefa recebida. Mas sabe o que é um ato falho? É uma questão de tempo. Por incrível que pareça, dá pra sentir você lambendo os abscessos que causou no que era meu ombro direito. Suas unhas rasgam minha pele aqui e ali, num desespero que, eu sei, não é mais parte do tratado. Em breve, você estará se esfolando em mim. Não sou louco. Você não adoraria repetir o mantra?

sexta-feira, 7 de maio de 2010

O pedaço descoberto

Lá fora, distante,
Sei que dentro, estilhaçado,
Deito nu em flagrante.

quinta-feira, 29 de abril de 2010

O Argumento

Busquei a inspiração em lugares inóspitos. Preso no coração de um deserto, tentei fugir andando em círculos, com os pés bêbados. Tentei cavar. Encontrei ossos de antepassados, grãos de areia esquecidos, odores raros.

Encarei as nuvens esperando ter um déjà vu. Encarei as nuvens esperando ter um déjà vu.

Inventei alfabetos para compor poemas apócrifos. Expirei o ar de junho imaginando libertar meus sentidos. Não senti a pancada na nuca, surda.

Prendi entre os dentes galhos que encontrei pelo chão, esperando neles encontrar seiva. Minha boca ensangüentada sentiu o sabor do ferro e regurgitei meu jejum.

Caminhei sobre a ponta dos pés, cuidadoso, para então descobrir um colchão de pregos preso entre a carne e a as unhas. Ri defeito louco.

Amaldiçoei minha inépcia enquanto beijava com calor minha coragem. Descobri uma bússola em meu bolso, sem ponteiros. Nela, busquei as horas.

Rocei meus cabelos na relva verde, sorri para o sol e a lua, desejei mais que tudo estar quedo. Um cão vagabundo se aproximou e lambeu meus lábios, neles encontrou doçura. De pé, entreguei-lhe meu passado como um presente. Recolhi-me à sombra e observei a dança do vento. E foi assim que aprendi.